Gritos do passado
Ocidente tenta coibir o ritual milenar africano de extirpação do clitóris de crianças e Adolescentes
EDUARDO FERRAZ
Existe um dia na vida de milhões de africanas que elas jamais esquecem. É o dia em que foram circuncidadas. Nada comparado à circuncisão masculina. A brutalidade pela qual cerca de dois milhões de meninas e adolescentes passam anualmente é praticada em pelo menos 28 países da África e, dependendo da região, a tortura varia de Intensidade. No tipo de mutilação mais brando, a ponta do clitóris é cortada. Em alguns rituais, ele é integralmente extirpado (clitoridectomia). Na versão mais radical, é feita uma infibulação: são retirados o clitóris e os lábios vaginais e, em seguida, o que sobrou de um lado da vulva é costurado ao outro lado, deixando-se apenas um minúsculo orifício pelo qual a mulher urina e menstrua. Tudo isso é realizado sem nenhum tipo de anestesia, com instrumentos não-esterilizados como facas, tesouras, giletes ou mesmo cacos de vidro. Para qualquer ocidental, o fato provoca indignação. Mas ele está tão arraigado em algumas populações que muitas africanas nem imaginam que fora dali o costume não seja adotado. As estimativas sobre o atual número de mulheres que já se submeteram a esta tradição monstruosa variam de 80 Milhões a 130 milhões.Por trás da prática, existe uma concepção extremamente machista, que não está particularmente ligada a nenhuma grande religião. Apesar de ser normalmente associada aos muçulmanos, já que a maior incidência acontece entre suas fiéis, a circuncisão feminina foi descrita no Egito em 500 a.C., ou seja, pelo menos 1.100 anos antes da fundação do islamismo. Os defensores do ritual, tanto homens quanto mulheres, têm vários argumentos para justificá-Lo: dizem que ele purifica a menina, confere a seu caráter uma natureza submissa e a habilidade de suportar a dor.Além disso, evitaria que a adolescente levasse uma vida promíscua, porque a clitoridectomia impossibilita o orgasmo. E ainda: ficaria reduzida ou anulada a infidelidade feminina e seria criado um vínculo forte entre as diferentes gerações de mulheres de uma comunidade.O ritual é encarado em alguns países como uma passagem da infância para a vida adulta e realiza-se quando as garotas estão na puberdade. Em Serra Leoa, por exemplo, mulheres da aldeia levam algumas meninas para o meio da floresta e lá permanecem por semanas. A presença de homens da tribo ou estranhos é totalmente proibida. Quando retornam da mata, dizem as mais ovelhas, as meninas já são mulheres. No Quênia, a cerimônia é realizada em frente à casa da família da jovem, sobre um couro de vaca estendido na terra. Enquanto guerreiros cantam músicas próprias para o ritual, uma mistura de água com leite é derramada sobre o corpo da menina, que sofre, em seguida, a infibulação - realizada por aldeãs.Em localidades rurais, não existe escapatória à mutilação. Algumas adolescentes prefeririam não aderir a esta tradição, mas os pais, normalmente, desconsideram o desejo das filhas. Para eles, atender a essa vontade significaria uma grande humilhação perante a comunidade.Porém, raramente surgem discussões sobre a questão, porque a maioria das jovens aprova a mutilação. Por meio dela, adquirem um status social mais elevado e se habilitam para o casamento.Na Somália, onde a prática não é considerada um ritual de passagem para a maturidade, indagações sobre submeter-se ou não ao corte são quase impossíveis. Neste país, é costumeiro realizar a clitoridectomia ou a infibulação em crianças de até três anos de idade, que não têm Nenhuma noção do que lhes acontece.Onde a discussão vem ganhando tons eloqüentes é fora da África. Em setembro de 1994, imagens de uma garota de dez anos sendo levada a um estabelecimento egípcio para ser mutilada chocaram o mundo ao serem transmitidas pela rede de televisão CNN. O local do ritual era uma barbearia e os gritos de dor da menina podiam ser ouvidos ao fundo, enquanto a repórter relatava a experiência. A notícia foi ao ar enquanto realizava-se, na capital Cairo, a Conferência das Nações Unidas sobre População. Logo, o assunto foi estampado em manchetes de jornais, constrangendo o governo do Egito. Políticos, organizações não-governamentais (ONGs) e a ONU se levantaram, então, contra a prática.O próprio termo "circuncisão" foi substituído por outro mais próprio e destituído da possibilidade de eufemismo: Mutilação Genital Feminina. No início do ano, o comitê da ONU para Eliminação da Discriminação contra Mulheres mandou às favas o relativismo antropológico e considerou a mutilação feminina uma violação dos direitos humanos - o que abre espaço para que governos onde o ritual é praticado sofram maiores pressões para eliminá-lo.Os EUA, há dois meses, passou a proibir legalmente o ritual em seu território. Explica-se: a mutilação ainda ocorre entre imigrantes africanos. "Eu não posso sair de casa e deixar minha filha com minha mãe", conta Dinde Kashule, uma imigrante de Gana que acaba de dar à luz uma menina em Nova York. Ela e sua família imigraram para os EUA e Dinde ficou grávida. Agora, ela não pode retornar ao trabalho, pois não tem com quem deixar sua filhinha. A mãe de Dinde ainda acredita nas tradições da velha Gana e diz que vai circuncidar a neta assim que tiver chance. "Eu e meu marido não queremos que nossa filha seja circuncidada. Mas minha mãe fica dizendo que a menina vai ficar sexualmente excitada, que não vai poder ficar menstruada e que terá muitas doenças no futuro. Ela diz que não vai permitir isso e que na primeira oportunidade fará o ritual na minha filha", relata Dinde. Megan Fitzgerald, presidente da organização americana Mulheres contra a Mutilação, explica crenças como a da mãe de Dinde. "Nos países africanos, a medicina é feita como há milênios e está cheia de superstições e crendices", conta Megan. "Para fazer certas sociedades tribais mudarem seus ritos será preciso ajudar na evolução educacional da população."De fato, ao contrário do que acredita a matriarca ganense radicada em Nova York, a mutilação genital feminina só traz problemas à saúde.Com muita frequência, as mulheres contraem tétano, gangrena ou infecções crônicas na região pélvica. Aquelas que foram infibuladas sofrem mais ainda. A menstruação é incrivelmente dolorosa. No parto, podem acontecer complicações sérias para o bebê e para a mãe. Nessas ocasiões, elas precisam fazer a reabertura da vagina e qualquer demora acarreta uma pressão às vezes fatal no crânio e na coluna da criança. Quando a mãe não faz a abertura da vagina, a saída do bebê do útero pode provocar cortes que vão da vagina ao ânus.Para tentar coibir esta tortura, ONGs pressionam governos – não apenas africanos e árabes, mas também as grandes potências ocidentais – a enfrentar o problema. "Temos inclusive trabalhado em programas educacionais com comunidades africanas", afirma Megan. "Mas ainda vamos ter muita luta pela frente."A presidente da organização Mulheres contra a Mutilação sabe do que está falando quando calcula de maneira realista a dimensão da batalha. Dois meses atrás, milhares de mulheres saíram às ruas de Freetown, capital de Serra Leoa, em defesa do ritual absurdo. Segundo as manifestantes – a maioria pertencente a uma sociedade secreta feminina chamada Bundo-, os ocidentais não conseguem compreender a importância da mutilação genital. O resultado dessa briga é incerto. Até o momento, as organizações internacionais contra a mutilação não conseguiram reduzir a ocorrência do ritual, que mutila cerca de 3,8 mulheres por minuto.
Colaborou Osmar Freitas Jr., de Nova York
Um comentário:
da pra resumir melhor pra ppoder entender direito?
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